O filme A Substância (The Substance) é um exemplo marcante do gênero body horror, que explora a transformação e deterioração física do corpo humano. Ao analisá-lo à luz da psicanálise, podemos compreender como essas imagens perturbadoras refletem ansiedades e conflitos profundos relacionados à identidade, ao inconsciente e à relação com o próprio corpo.
O body horror se caracteriza pela desconstrução dos limites do corpo, com mutações grotescas que provocam terror e repulsa. Na psicanálise, essa violação física do corpo pode ser interpretada como uma manifestação de angústias psíquicas e simbólicas.
O filme A Substância traz à tona esse medo profundo da perda de controle sobre o corpo, evocando uma série de conceitos psicanalíticos que nos ajudam a compreender o impacto psicológico e emocional do gênero.
O Estranho ("Das Unheimliche") de Freud
Sigmund Freud desenvolveu o conceito de “Das Unheimliche”, traduzido como "o estranho", para explicar a sensação de inquietação e desconforto quando algo familiar se torna assustador. No body horror, o corpo humano, que normalmente representa um lugar de segurança e controle, é transformado em algo terrível e desconhecido. No filme A Substância, essa transformação física evoca medos inconscientes sobre a integridade e controle do corpo, expondo vulnerabilidades profundas.
O Real Lacaniano
De acordo com Jacques Lacan, o Real é uma dimensão da experiência que não pode ser simbolizada ou compreendida completamente. No body horror, as mutações corporais são uma forma de o Real invadir a vida dos personagens, representando algo incontrolável e incompreensível. O corpo, que deveria ser um espaço de identificação e controle, torna-se um território de caos. No caso de A Substância, a mutilação física representa essa ruptura entre o simbólico e o Real, revelando a impossibilidade de controle completo sobre a própria existência.
Angústia de Castração e a Destruição do Corpo
A destruição do corpo, um elemento chave no body horror, pode ser vista como uma representação simbólica da angústia de castração, um medo profundo de perda de controle e integridade física. O filme ilustra esse medo primal, ao retratar o corpo em processo de desintegração e perda de sua forma original. Isso conecta o espectador a uma ansiedade universal: a fragilidade e vulnerabilidade do corpo humano.
Abjeção: O Corpo como Lixo
A filósofa e psicanalista Julia Kristeva desenvolveu o conceito de abjeção para descrever a repulsa gerada por aquilo que transgride as fronteiras entre o eu e o que é considerado “não-eu”. No body horror, o corpo é mostrado de forma abjeta, violando a ordem e o que é socialmente aceito. Sangue, carne e fluidos corporais expostos tornam-se um lembrete da fragilidade humana. No filme, o abjeto é explorado de maneira visceral, criando uma experiência psicológica e emocional de desconforto e horror.
Escolas Psicanalíticas e o Body Horror
As diferentes escolas da psicanálise oferecem visões valiosas para entender o body horror, mas é a escola lacaniana e as teorias pós-estruturalistas que melhor explicam os fenômenos retratados em A Substância. Lacan, com sua ênfase na relação entre o simbólico, o imaginário e o Real, ajuda a interpretar como a mutação do corpo revela aspectos do inconsciente e do trauma.
Julia Kristeva, com sua teoria da abjeção, também fornece uma leitura poderosa para entender o terror causado pela violação dos limites do corpo. A repulsa e o desconforto gerados pelo filme estão diretamente ligados à ideia de que o corpo pode se tornar algo “não humano”, rompendo as fronteiras da identidade e da ordem social.
O filme A Substância nos oferece uma reflexão profunda sobre o medo do corpo, da perda de controle e da vulnerabilidade humana. A partir das lentes da psicanálise, especialmente pelas contribuições de Freud, Lacan e Kristeva, podemos interpretar o body horror como uma forma de externalizar ansiedades inconscientes sobre a identidade, a integridade física e a mortalidade. A transformação grotesca do corpo, retratada no filme, simboliza medos profundos e universais, sendo o body horror uma metáfora poderosa para o terror existencial que todos nós enfrentamos.
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